Acordei como acordam os tolos, cheio de felicidades

Acordei como acordam os tolos, cheio de felicidades
Estação Poesia

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

As Leituras do Corvo

DOMINGO, 25 DE JANEIRO DE 2015

Acordei como Acordam os Tolos, Cheia de Felicidades (Ione França)

Num olhar sobre o mundo que mistura a magia e o impossível com as coisas mais ou menos banais do quotidiano, estes são textos que contemplam a vida, no seu mais belo e no que tem de mais cruel. Olhares que vêem de uma forma inesperada, que misturam os cenários mais improváveis com a simplicidade dos sonhos e dos afectos. São textos cuja soma é uma perspectiva bastante pessoal, e, ainda assim, particularmente lúcida, sobre o que é o mundo dentro de cada um.
Um dos aspectos mais cativantes neste livro é que cada um dos textos é, por si mesmo, uma forma completa e, ainda assim, o conjunto forma um todo maior que a soma das partes. Há uma impressão de unidade, de perspectiva comum a todos os textos, uma voz própria que se reconhece ao longo de todo o livro. E é interessante notar que, seja na contemplação de um amor pouco familiar, num relance às noites mais sombrias da vida ou numa perspectiva própria do que é - ou do que devia ser - a vida quotidiana, há uma personalidade coesa que se reflecte nas ideias.
E das ideias sobressai um outro ponto forte. Se há, de facto, questões que se repetem nalguns dos textos, o que é particularmente evidente para quem ler o livro todo, ou em grande parte, de seguida, há, ainda assim, uma boa diversidade. De temas, de pontos de vista e de formas de entender cada situação. Esta diversidade, conjugada com a tal impressão de unidade do sujeito, misturam-se num equilíbrio delicado, formando um todo coeso, mas em que cada ideia é válida por si mesma. E, por isso, um conjunto mais complexo.
Por último, importa ainda referir a forma de escrita, e também nesta se destaca o equilíbrio. Entre frases simples e outras de complexidade surpreendente, imagens facilmente reconhecíveis e outras tão improváveis que não podem deixar de surpreender, percursos descritivos e momentos de introspecção. Tudo isto nas medidas certas, e na base de uma construção mais ampla, em que também em termos de escrita os traços que há em comum entre os vários textos se tornam especialmente evidentes.
A soma de tudo isto é, portanto, um livro equilibrado, em que a diversidade de temas se conjuga com a unidade da voz que os aborda, para dar forma a uma leitura cativante e surpreendente. Vale a pena ler.

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segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

mariommoura.blogspot.com

19.       PARTIDA. A GRANDE AVENTURA

  Naquele tempo (1949), uma viagem de avião internacional era inusitada,  pelo que foi natural  que toda a família fosse ao aeroporto dizer adeus ao jovem que embarcava já depois da meia noite para Nova York, para um futuro completamente desconhecido.  Hoje, para mim, uma rematada loucura, mas, então, uma fantástica aventura.
  Quando os altifalantes berraram: “Senhor Mário Mendes Moura, favor dirigir-se ao balcão da Polícia de Vigilância e Defesa  Internacional”,  gelei. Contudo, não podia mostrar que ficara preocupado, principalmente perante a minha mãe e o meu pai,  fiz um sorriso de  tranquilidade e lá fui, com o coração apertado.
  No guiché da PVDI, lá estavam dois pides com a indisfarçável cara de pides. Com um falso sorriso de ingénuo perguntei porque me chamavam.
— O senhor não vai poder viajar, acho que  conheço a sua cara, e este passaporte não me parece em ordem,  preciso de averiguar a sua ficha lá na sede.
— Mas que ficha? Sou estudante, vou fazer uma viagem de negócios na Venezuela, para o meu pai que não consegue viajar. Volto antes de um mês, veja na minha passagem. Tenho visto de trânsito nos Estados Unidos e de turista na Venezuela, estão aí confirmados e carimbados no passaporte. Está tudo em ordem.
— Conheço a sua cara, não me engano. Faço plantões lá na sede a vigiar os que fazem ‘estátua’. Lembro-me bem que, quando foi a sua vez,  foi muito engraçadinho ao dizer-me que mais tarde os meus filhos me iriam ver enforcado nos candeeiros da Avenida da Liberdade, e se eu não ficava preocupado com isso. 
   Entrei em pânico, mas felizmente acho que não o demonstrei. Claro, estive em várias sessões do que eles chamavam ‘estátua’, nas quais um pide se sentava e nos vigiava para não nos sentarmos no chão, tínhamos que ficar de pé, andar o mínimo. De duas em duas horas o pide era revezado e o que chegava vinha sempre com ameaças e grosserias para nos desmoralizar. O truque era dizer coisas do género das que o pide agora me acusava.
  Se não embarcasse, adeus à viagem. A António Maria Cardoso informaria que eu estava com residência fixada em Lisboa e que o meu pedido de passaporte não tinha passado por lá. Realmente, tinha conseguido o meu passaporte diretamente no Registo Civil Central, com ordem direta do Capitão Matos, Tesoureiro Geral, nosso vizinho e que me conhecia desde garoto. Por isso não houvera o trâmite da passagem do processo pela PVDI.
   ‘Perdido por cem, perdido por mil’, pensei. Com a maior naturalidade disse ao polícia:
— Olhe, senhor, pode telefonar para o Capitão José Catela, ou pedir que a sede o faça, para dizer que o filho do senhor Gil Mendes de Moura está aqui para embarcar com a documentação em ordem e vocês querem impedir.
— Acha que vamos telefonar para o Capitão a esta hora?
— É melhor do que ele amanhã cair em cima de vocês os dois! Telefonem, por favor.
  A minha insistência e a cobardia deles acabou por convencê-los. Com muitas hesitações, troca de palavras entre os dois, resolveram liberar-me. Eu sabia, por experiência, que eles tinham mais medo do ‘esquema pidesco’ do que nós, os detidos. Claro está que o Capitão Catela nem imaginava a existência do meu pai, um pacato importador/exportador autónomo. Também não sei porque pelo menos não telefonaram para a sede, talvez por ser tarde, ou por insegurança.
   O numeroso grupo familiar, umas vinte pessoas, sem suspeitar sequer  do susto por que eu passara, acolheu-me em clima de festa  e de antecipada saudade, que afinal duraria duas décadas. Entretanto eu contava angustiado os minutos para a partida. Claro,  não foi sem emoção que me despedi de todos, rumo a Caracas, via Nova York, voo TWA, com não muito mais do que cem dólares no bolso.
  Fora o meu amigo António Pedro, de quem eu era padrinho do casamento dele com a minha boa amiga Glicínia Quartin,  que trabalhava na TWA,  a aconselhar-me esse voo,  às quintas-feiras e que deveria fazer conexão na sexta  de Nova York para Caracas, pela AVE. Mas, segundo António Pedro, essa conexão numa acontecia como era prevista no horário e, neste caso, eu entretanto ficaria por conta da companhia até acontecer o tal voo semanal para Caracas, provavelmente dois ou três dias mais tarde.
   Quando me sentei na poltrona do avião senti a alegria de estar em liberdade. Alegria que durou apenas umas três horas, pois logo anunciaram a descida para o aeroporto de Santa Maria, aeroporto açoriano construído pelos americanos durante a guerra para abastecimento dos seus voos intercontinentais, e que passou ao serviço da aviação civil portuguesa em 1946.
  ‘Não muito longe da terrível ilha que albergava a prisão do Tarrafal’, pensava eu aterrorizado. ‘E se os pides depois comunicaram com a sede e esta contactara com o aeroporto para onde estávamos a descer, ordenando a minha detenção?’, interrogava-me. 
   Quando o avião aterrou fingi estar a dormir para não sair, mas sem resultado, a hospedeira informou-me de que todos os passageiros, todos,  tinham  mesmo que sair. Desci do avião e percorri a pé e preocupado o piso do aeroporto até à gare, nessa época nem se sonhava com ‘mangas.  No portão da gare estava um tipo da Polícia de Vigilância pedindo os passaportes aos viajantes. Entreguei o meu, claro, e fiquei vagueando pelo salão na certeza de que, ao voltar para o avião, o pide não me devolveria o passaporte e nem me deixaria embarcar. Um sofrimento.
   Mas felizmente as minhas preocupações eram infundadas. Era apenas uma rotina e Lisboa dormia. Ao voltar à minha poltrona jurei para mim mesmo não mais voltar a Portugal enquanto o regime fosse fascista, com ou sem Salazar.

  Nevava à chegada a Nova York. Era fevereiro. Não tive quaisquer problemas com a Polícia de Imigração Americana, para minha surpresa. Também não foi surpresa o representante da AVE, a companhia de aviação venezuelana que garantia a ida para Caracas, informar-me  que não havia voo previsto para Caracas para aquele dia, nem sequer para sábado. Possivelmente o voo seria no domingo. Confirmariam o voo diretamente para o hotel, para onde me recambiaram com um voucher para pagar a estadia, julgo que se chamava ou White Elephant, ou Big Elephant, em Manhattan. Um hotel do tipo de três estrelas de hoje, não mais de quinze andares, não longe do Empire Building. Nunca consegui localizá-lo das muitas vezes que depois visitei aquela cidade. Inexperiente na época nem reclamei da AVE o pagamento do transporte para a cidade.
  Mal acabei o meu diálogo ao balcão da AVE, uma confusão imensa em razão de muitos outros passageiros na mesma situação do que eu, afastei-me um pouco do balcão e logo um pretão me disse algo que não entendi, estava aparentemente de uniforme, e afastou-se arrastando pelo chão a minha mala (não haviam inventado ainda as malas com rodinhas). Felizmente deixou-me na fila de táxis e cobrou-me três dólares.
  O trajeto para a cidade maravilhava-me, exultei ao atravessar a ponte que tão bem conhecia de filmes, mas não achei graça nenhuma quando o táxi estacionou frente ao hotel e me arrancou uma enormidade de dólares. Considerando os meus recursos, deveria ter usado ónibus até à Grande Central e só depois usar táxi.
   Assim que me instalei no quarto e usei a casa de banho, vesti os agasalhos de que dispunha e a gabardine, e saí para me meter na neve. Era puro entusiasmo, Estados Unidos, neve, Nova York, Manhattan, uma nova vida, julgava que promissora. Quase rebentava pelas costuras. Num atrelado tomei um chocolate quente com donuts, a delícia das delícias, enquanto admirava os flocos de neve a  flutuarem, uma novidade para mim.
  Independente, rumo a um país rico de oportunidades, longe de um regime castrador, estava confiante de que não demoraria a estar ‘muito bem’ e a poder chamar a minha mulher e o meu filho, com pouco mais de um ano.
   No Consulado da Venezuela, em Lisboa, quando pedi o visto e apresentei o certificado do curso de silvicultura, apesar de faltar uma cadeira e o estágio, garantiram-me que o governo me doaria terras e maquinaria e faria empréstimos para eu montar uma exploração agrícola. ‘Como nos filmes americanos’, pensei, e acreditei, pois estava tudo por fazer na agricultura da Venezuela. Pobre de mim, não conhecia ainda a descarada mentira da burocracia sul-americana.
     Por dois dias vagueei pela notável ‘maçã’ e tudo me maravilhava. Tinha direito ao pequeno-almoço no hotel e nele tratava de fazer as minhas ‘reservas’, como um camelo antes de enfrentar o deserto. Não era o deserto que eu ia enfrentar mas sim uma gigantesca, soberba e assustadora cidade. Durante o dia, os muffins, os  hot dogs e osmeat balls garantiam-me  a energia a preço módico.
   Para quem sempre vivera em Lisboa, especialmente em Campo de Ourique, com os seus modestos prédios de quatro andares, a diferença era abissal. A cidade impressionou-me muito, com os seus arranha-céus, alguns interessantes, o imenso movimento de pessoas a todas as horas do dia e da noite, a variedade de raças cruzando-se nessas multidões, o néon das lojas e dos gigantescos anúncios publicitários. Contudo, o cinema tem o condão de mistificar as cidades, como também de desvirginá-las. Tantos e tantos filmes haviam criado em mim um forte desejo de conhecer esta cidade, mas vira tantas e tantas vezes aquelas ruas, prédios e anúncios luminosos, que estes não me eram desconhecidos.
   Estranhamento, eu que sou friorento enfrentava bem o frio, que este sim, desconhecia. Percorria as ruas como um andarilho, ou um desesperado vagabundo, lembrava-me de alguns contos de O’Henry e de Tchecov, entrava o mais possível nos espaços fechados e olhava tudo como menino frente à montra de uma loja de doces. Lia com atenção os menus dos restaurantes, o quadro com os preços das entradas nos cinemas (que variavam de sessão para sessão), espiava o custo das entradas nos museus, e os meus não-dólares obrigavam-me a sorrir e continuar  em frente.
   Otimista, prometia a mim mesmo voltar àquela cidade com dinheiro suficiente para não ter todos aqueles acessos impedidos. Não sabia ainda que tão poucos anos depois voltaria muitas vezes, mais de uma dúzia, em condições de usufruir a múltipla e plurifacetada oferta desta babel, que nunca sossega, nunca dorme, sempre tem algo de novo a oferecer.
   Domingo finalmente o carro da companhia, como tinham avisado, apanhou-me no hotel para me levar ao aeroporto. O avião com as cores venezuelanas era bem menor do que o da TWA e não me inspirou muita confiança. Mas o que fazer? Contudo foi um voo tranquilo, talvez de seis ou sete horas.

 Na chegada à Venezuela, quando me despachei da Imigração em Maquetia, contei os meus dólares, treze. Perguntei quanto era um táxi para Caracas e após longa discussão a ‘corrida’ ficou estabelecida em doze dólares. E lá começámos a escalada, do nível do mar até à cota mil, onde os espanhóis encarrapitaram Caracas. Apenas vinte quilómetros, mas curvas em declive assustador, uma estrada estreita, realmente empolgante. Só muito depois foi construída uma autoestrada com arrojados viadutos que tornam hoje esta viagem um passeio.
   O táxi largou-me no centro da cidade, rodeado de arcadas, uma bela solução para um clima tropical e de inspiração francesa, copiando a Rue Royal  de Paris. Fora nesta praça que tinha combinado com o meu amigo Daniel Morais o encontro, antes por carta e depois de Nova York por telegrama, do próprio aeroporto, avisando da hora provável da chegada.
   Enquanto esperava entrei numa ‘Fuente de Soda’, que deduzi tratar-se de uma pastelaria mais moderna, tomei um delicioso sumo de pera e uma sanduíche de queijo, e lá se foi o meu último dólar. Mas senti-me feliz, imensamente feliz. Vim a saber depois que parvamente feliz.
  Foi com alegria que abracei o Daniel, que não demorou a chegar, o meu querido e leal amigo, companheiro presente mas invisível no Aljube, e depois partilhando a mesma cela em Caxias. Éramos ambos da Comissão Central do MUD Juvenil e ambos tínhamos sido presos em 31.1.48 sob o pretexto do MUDJ ter convocado uma manifestação para esse dia, comemorando uma esquecida data de uma revolução portuense. Ficámos dois meses em celas distintas no Aljube e depois de muitos interrogatórios, em que tentaram sempre que um denunciasse o outro, com artifícios e mentiras, fomos transferidos para Caxias. Apenas os dois numa grande cela, felizmente com janela, mas suspeitávamos que estávamos sob escuta, pois não encontrávamos explicação para esta transferência se não fosse esse o objectivo: escutar as nossas conversas. E foi um martírio, pois os nossos diálogos eram censurados por nós mesmos, alguma coisa mais confidencial era escrita e depois queimada.
   Mas naquele momento, sob aquele sol radioso e céu azulíssimo, o que importava é que eu tinha uma vida pela frente em liberdade e, acreditava, cheia de possibilidades.

  Naquele país comi o pão que o Diabo amassou, e não é gostoso, mas foi lá que fiquei adulto. Deixei de ser ingénuo e sonhador, tornei-me mais pragmático e realista, mas não canalha,   para poder enfrentar a difícil vida de emigrante e de homem de negócios.