O DOMADOR DE ALMAS
O SEU ÚNICO OFÍCIO,
AMAR…
AMAR…
Amo! Ah, como amo!
O meu único ofício é amar.
Salário? Nenhum… Pago promessas.
Sou o Funcionário Público do amor e amo todas
as manhãs, tardes e noites nos gabinetes de trabalho da cidade, pelos armazéns
das docas…nu, apaixonado e viril. Foi na secretária castanha que emprenhei a amásia
do patrão. Cadelinha faceira!
A cabra tratou direitinho da minha desgraça.
Aborto? Nem pensar! Mentir que o filho é do chefe, nunca! Pior, andou de
barriga crescida por mais de nove meses, ainda tenho a impressão que foi por
uns dezoito e tantos anos. E quando a criaturinha nasceu, já nasceu com dentes,
cabelo, alfabetizada e de profissão. O meu menino é o Domador de Almas e, na
injustiça de ser filho meu, e de estar cheio de amores com a mãe,
surpreendeu-me a amar esta musa. Arrastou-me para a fogueira, arranjada em
praça pública pela sua vontade e sem o seu amor de filho, só com a sua
rivalidade de homem, acendeu os fósforos e desgraçou-me o corpo… O amor não me
livrou o corpo das chamas, salvou-me apenas os olhos e o espírito, que não
queimaram junto às minhas carnes e nudez.
Já não tenho corpo, só estes dois olhos, estas
duas rodelas cinzas, amparadas sobre as tábuas dos soalhos dos escritórios ou
nas frias pedras das ruas. É com eles, somente com eles, que conto para amar
todas as mulheres que vejo.
Ela, a mãe do Domador de Almas, por despeito,
não aconselhou o filho a poupar-me. Foi bonita e quando a possuí era a minha
musa de fim de tarde, o meu sonho de cheiros e de prazeres. Quando lhe dei as
costas e fui em busca de outras musas sabia da sua gravidez, mas não do seu
desprezo e vinganças. Se a mulher tivesse dito uma palavra, o filho ainda teria
Pai, e o Pai ainda seria amante!
Estou vivo, ainda vivo e amo, mesmo que sem o
consolo de ter o meu corpo, mas com estes meus dois olhos, inexplicavelmente
inteiros. De cor cinza, desde o meu nascimento eles já se predestinavam a
acabar, apenas, olhos e cinzas!
Só me restam estes dois olhos perdidos no
mundo, perdidos, mas honrados. Amam e não se cansam de tanto amar. O meu corpo,
no meio das labaredas vermelhas, azuis e amarelas, deixou de ser corpo, de ter
a cor da pele. E não pensem que guardo rancor, ao meu menino, é filho, sangue
do meu esperma, tive outros, mas este é especial, traçou-me o destino.
O SEU ÚNICO OFÍCIO,
SOFRER…
©Ione França
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